ESTÉTICA DAS FAVELAS


A questão que se discute já não é mais, felizmente, relativa à remoção e relocação dos habitantes das favelas para áreas longínquas da cidade. Hoje, o direito à urbanização é um dado adquirido e incontestável, ou seja, a questão já não é mais simplesmente social e política mas deve passar obrigatoriamente por uma dimensão cultural e estética.

Sempre houve um tabu, em se tocar nas questões culturais e principalmente estéticas das favelas, mesmo se sabendo, que o samba e o carnaval (e várias outras festas populares e religiosas), ícones da nossa cultura popular, se desenvolveram e possuem ligação direta com esses espaços, e que, ao mesmo tempo, várias favelas foram removidas por serem consideradas "antiestéticas".

Em contrapartida, inúmeros artistas, tanto da própria favela quanto da dita cidade formal, ou até mesmo estrangeiros, se influenciaram e buscaram inspiração nessa "arquitetura" das favelas.

Além de fazer parte do nosso patrimônio cultural e artístico, as favelas se constituem através de um processo arquitetônico e urbanístico vernáculo singular, que não somente difere, ou é o próprio oposto, do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos, mas também compõe uma estética própria, uma estética das favelas, que é completamente diferente da estética da cidade dita formal e possui características peculiares.

Do caso mais extremo onde a favela era removida e seus habitantes relocados em conjuntos habitacionais cartesianos modernistas, até o caso mais brando atual, onde os arquitetos da dita pós-modernidade passaram a intervir nas favelas existentes visando transformá-las em bairros, a lógica racional dos arquitetos e urbanistas ainda é prioritária e estes acabam por impor a sua própria estética que é quase sempre a da cidade dita formal.

Ou seja, a favela deve se tornar um bairro formal para que uma melhor integração da favela ao resto da cidade se torne possível. Mas as favelas já não fazem parte da cidade há mais de um século? Será que essa integração formal é necessária? Esta não seria uma imposição autoritária de uma estética formalista visando uma uniformização do tecido urbano? Porque não se assume de uma vez a estética das favelas sem as pequenas imposições estéticas, arquitetônicas e urbanísticas, dos atuais projetos de urbanização que acabam provocando a destruição da arquitetura e do tecido urbano original da favela para criar espaços impessoais (que muitas vezes não são apropriados pela população local, ficando rapidamente deteriorados e abandonados)?

Por que o "Pattern" (Padrão) bairro é sempre o exemplo a ser seguido em detrimento do inventivo e rico, tanto culturalmente quanto formalmente, "Pattern" favela? Porque não tentar seguir o "Pattern" Favela, tentando aprender com a sua complexidade e riqueza formal? Essa forma diferente de intervenção, inspirada nas favelas, poderia ser interessante para se atuar também na própria cidade formal (principalmente nos seus limites e fronteiras).

A singularidade, ou melhor, a alteridade, desses espaços ditos "informais" ou "selvagens" era até pouco tempo completamente desprezada pelos arquitetos e urbanistas. As favelas possuem uma identidade espacial própria (mesmo sendo diferentes entre si) e ao mesmo tempo fazem parte da cidade como um todo, da sua paisagem urbana. Para se intervir nesse universo espaço-temporal, que é completamente diferente do resto da cidade, é imprescindível se compreender um pouco melhor essa diferença.

Algumas características básicas do dispositivo espaço-temporal (mais do que o próprio espaço é a temporalidade que causa a diferença) das favelas podem ser exemplificadas por três figuras conceituais (não são somente formais/metáforas espaciais), em três escalas diferentes (aqui apresentadas de forma sintética e esquemática):

1. Fragmento (do corpo à arquitetura). Resultante da observação dos barracos, da forma fragmentária de se construir nas favelas, baseada na idéia de abrigo, que difere completamente da prática da arquitetura projetada por arquitetos. Os barracos das favelas são construídos inicialmente a partir de fragmentos de materiais heteróclitos encontrados por acaso pelo construtor. Assim, os barracos são fragmentados formalmente.

2. Labirinto (da arquitetura ao urbano). Baseia-se no estudo do conjunto de barracos, do processo urbano labiríntico das favelas, compreendido através da noção de percurso e consequentemente da experiência do espaço urbano espontâneo, que é muito diferente do espaço desenhado por urbanistas. Ao se sair da escala de abrigo para aquela do conjunto de abrigos, do espaço deixado livre entre os barracos que forma as vielas e os becos das favelas, a figura do labirinto aparece quase que naturalmente ao "estrangeiro" que penetra os meandros da favela pela primeira vez.

3. Rizoma (do urbano ao território). Diz respeito à ocupação selvagem dos terrenos pelo conjunto de barracos, e sobretudo ao crescimento rizomático das favelas formando novos territórios urbanos, fundamentado pelo conceito de comunidade, independente de qualquer planejamento urbano ou territorial. Como a etimologia vegetal do termo favela (Jatropha phyllacantha) poderia indicar, as favelas são formações "orgânicas" que se constituem por ocupações "selvagens" de terrenos. A própria invasão de espaços vazios determina um ato de demarcação e de um conseqüente processo de territorialização. Os barracos aparecem no meio da cidade, entre seus bairros convencionais, exatamente como a erva que nasce no meio da rua, dos paralelepípedos ou mesmo do asfalto, criando enclaves, micro-territórios dentro de territórios mais vastos. A invasão de um terreno por abrigos forma um novo território urbano, uma cidadela dentro da cidade, que normalmente possui suas próprias leis.

Favela: um espaço-movimento. As três figuras conceituais, sucintamente aqui expostas, são ligadas entre si pela idéia de movimento das favelas. a estética resultante desses espaços – fragmentados, labirínticos e rizomáticos – é, consequentemente, uma estética espacial do movimento, ou melhor, do espaço-movimento. O espaço-movimento não seria mais ligado somente ao próprio espaço físico mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, e ao mesmo tempo, ao movimento do próprio espaço em transformação. O espaço-movimento é diretamente ligado a seus atores (sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto aqueles que os constróem e os transformam continuamente. No caso das favelas, os dois atores, podem estar reunidos em um só, o morador, que também é o construtor do seu próprio espaço. A própria idéia do espaço-movimento impõe a noção de ação, ou melhor, de participação dos usuários. Ao contrário dos espaços quase estáticos e fixos (planejados, projetados e acabados), no espaço-movimento, o usuário passivo (espectador), se torna sempre ator (e/ou co-autor) e participante. Quando se deseja, no momento de urbanizar as favelas, preservar a sua identidade própria, a sua especificidade estética, é preciso se pensar em incentivar a noção de participação, e ao mesmo tempo, conservar os espaços-movimento.

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